Morre Niède Guidon, a arqueóloga que reescreveu a pré-história brasileira

Sócia da SBPC desde 2004, Guidon colaborou com a criação de importantes instituições, como o Parque Nacional Serra da Capivara e a Fundação Museu do Homem Americano

WhatsApp Image 2025-06-04 at 12.07.59A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) manifesta seu profundo pesar pelo falecimento, na madrugada desta quarta-feira, 4 de junho, da arqueóloga Niède Guidon, aos 92 anos. Com forte atuação no estado do Piauí, Guidon foi um dos principais nomes na investigação da presença humana na América do Sul, e colaborou com a criação de importantes entidades, como o Parque Nacional Serra da Capivara e a Fundação Museu do Homem Americano.

De origem sa e indígena, Niède Guidon nasceu em São Paulo, onde se formou em História Natural em 1959. Com o diploma da Universidade de São Paulo (USP) em mãos, Guidon foi se especializar na área em que se consolidaria, a pré-história, obtendo um doutorado na Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne. Nos anos 1970, teve o a fotografias de pinturas rupestres localizadas no Piauí e decidiu trocar a França pelo sertão brasileiro para investigá-las. O encantamento pela região fez com que Guidon nunca mais saísse das terras piauienses.

A pesquisadora começou seus trabalhos em São Raimundo Nonato, onde montou uma equipe com cientistas e moradores para explorar a região. Após dez anos de atividades, sua equipe descobriu resquícios das agens de humanos há 50 mil anos, contrariando teorias que apontavam que a primeira chegada do homem ao Brasil havia sido há 12 mil anos.

“Em São Raimundo Nonato, no começo, as pessoas não entendiam [as descobertas arqueológicas]. Elas diziam que eram pinturas de caboclos, que é a maneira que elas chamam os índios. Mas, em contato com a gente, com as escolas e com tudo aquilo que eles foram vendo, a visão mudou. Por isso, nós achamos importante que nenhuma descoberta fosse para São Paulo, Brasília ou outra região. Por quê? Porque nós precisamos povoar o interior do Brasil, o interior do Brasil precisa fazer parte do nosso sistema econômico, e a arqueologia é uma maneira de atrair as pessoas para a região”, disse Guidon em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2003.

Nos últimos anos de atuação, Guidon lutou por melhores condições de infraestrutura no Piauí. A pesquisadora defendia a criação de políticas públicas e a maior participação de governos. Também rebateu críticas que afirmavam que brasileiros não se interessavam por Ciência ou História. “Se a população tem interesse em visitar as pirâmides do Egito, por que ela não teria interesse em conhecer a história do próprio país?”, refletiu, nos bastidores da gravação do Roda Viva. A solução, na sua visão, era a criação de políticas que estimulassem o conhecimento.

“Existe uma certa ignorância também em respeito aos desenhos rupestres, que são belíssimos, são obras de arte! Ainda neste ano (2003), um jornal publicou uma matéria sobre a região dizendo ‘onde existem desenhos que parecem feitos por crianças’. Quer dizer, o fato de os índios terem uma técnica de perspectiva e uma criatividade diferente da nossa faz com que pense que é uma pintura de criança, mas não é! E as pessoas aprendem a ver as coisas, se não te ensinam, você não é capaz de enxergar certas coisas.”

Sócia ativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) desde 2004, Niède Guidon foi homenageada na abertura da 65ª Reunião Anual da SBPC, realizada em 2013 na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE):

“Única como o Bioma que defende – a Caatinga -, seu jeito singular lhe trouxe notoriedade, vez por outra envolta por polêmicas, notícias sobre suas afirmações incisivas acerca do abandono e o descaso com a proteção das áreas naturais e com o desenvolvimento social das regiões onde a seca está presente. (…) Niède está na região mais seca, árida e desprestigiada do Nordeste brasileiro, valorizando, produzindo cultura e alternativas de desenvolvimento, centradas no potencial científico, turístico e cultural, que um dia, quiçá, será valorizado”, destacou o texto em sua homenagem, escrito pela atual secretária regional da SBPC no Piauí, Rute Andrade.

O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, recordou a visita feita à arqueóloga Niède Guidon em São Raimundo Nonato, dois anos atrás, ao lado das diretoras da entidade, Laila Salmen Espindola, Fernanda Sobral, Ana Tereza Vasconcelos. “Visitamos o maravilhoso Parque da Serra da Capivara e também fomos à casa dela, em sua propriedade. Um lugar muito bonito, grande, acolhedor, com muitas pessoas à sua volta. A gente percebia ali a liderança e o acolhimento que ela prodigava às pessoas que trabalhavam com ela”, relatou.

Para Janine, o legado da arqueóloga transcende sua presença física: “Mesmo ela tendo nos deixado, ela legou para a eternidade — para o tempo futuro, para gerações e gerações — essa criação incrível que é o Museu da Serra da Capivara.”

Janine Ribeiro destacou ainda a importância científica e simbólica do local. “Ela produziu um museu fantástico, que é um deleite para quem visita e deveria ser uma atração turística no oeste do Piauí. Além disso, ela conduziu pesquisas que revolucionaram o conhecimento sobre a presença humana no continente americano. Ela fará falta, mas deixa uma memória impactante e perene.”

Diretora da SBPC, Fernanda Sobral recorda também o encontro com Guidon, em 2023. “Foi muito bonito, porque ela nos explicou toda a sua teoria, depois nós vimos os dados e conhecemos os fatos, que a própria Serra hospeda. Para mim, foi uma aula de como se faz Ciência e de como se preserva um patrimônio.”

Laila Salmen Espindola conta que, na ocasião, o grupo de diretores da SBPC celebrou os 90 anos de Niède Guidon em sua casa. “Conversamos sobre sua trajetória, sua paixão pela arqueologia, pelas pinturas rupestres e pelo Parque da Serra da Capivara. Ela nos contou como envolveu a comunidade local na proteção do patrimônio: criou escolas, alfabetizou e formou mulheres, instalou 300 guaritas no parque — muitas delas operadas por mulheres moradoras da região —, e ela capacitou os homens a trabalhar com cerâmica, criou uma escola e uma fábrica que reproduz os desenhos rupestres — peças lindíssimas. Ela revolucionou o local.”

Espindola ressalta a dimensão social, ambiental e humana do legado deixado por Niède Guidon — e também sua generosidade: ela conta que a arqueóloga destinou o valor de um prêmio internacional à construção de um aeroporto na região, com o objetivo de facilitar o o de pesquisadores e turistas. “A humanidade hoje se despede de uma grande mulher, à frente do seu tempo, de uma grande cientista, mas também de uma pessoa extremamente humana, que nos deixa um patrimônio maravilhoso: como o ser humano pode mudar as coisas e ajudar tantas pessoas.”

Entidades e órgãos municipais também se manifestaram em luto pela perda de Niède Guidon. Em nota, a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) destacou as movimentações políticas da pesquisadora:

“A seu pedido, o governo brasileiro criou o Parque Nacional Serra da Capivara, no Sudeste do Piauí, região a que dedicou toda sua vida a preservar mais de 1.200 sítios arqueológicos e que guardam a maior concentração de pinturas rupestres do mundo, as mais antigas evidências da presença humana nas Américas e a riqueza da Caatinga revelada pela sua flora e fauna.”

No documento, a FUMDHAM também destacou o empenho de Guidon em solicitar à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) que a Serra da Capivara fosse alçada à Patrimônio Cultural da Humanidade, o que foi obtido em 1991:

“[Guidon] construiu um inovador modelo de desenvolvimento regional para o semiárido baseado na ciência, na geração de emprego e renda, criando e investindo em atividades não predatórias e sustentáveis, na educação, na saúde e na formação de novos pesquisadores e técnicos.”

As prefeituras de Coronel José Dias e São Raimundo Nonato decretaram luto de três dias. Segundo a nota de Coronel José Dias, “Niède foi a grande responsável por revelar ao mundo a grandiosidade arqueológica do nosso território”. Já o município de São Raimundo Nonato ressaltou que “suas pesquisas revolucionaram o entendimento sobre o povoamento do continente, enfrentando resistência da comunidade científica internacional, mas sendo reconhecida e reverenciada pelo seu trabalho incansável.”

Rafael Revadam – Jornal da Ciência